DE VOLTA AO FUTURO
A presença implícita e explícita do poeta Waly Salomão move a máquina de memórias da 22ª Bienal Sesc_Videobrasil, edição em que comemoramos quarenta anos de trabalho e pesquisa em torno da produção artística do Sul Global. Enquanto a exposição Especial 40 anos olha pelas frestas entre presente e tempo histórico a partir do Acervo Histórico Videobrasil – a instância material dessa trajetória e nossa razão de ser como instituição –, na exposição principal, que ocupa diferentes andares do Sesc 24 de Maio, 60 artistas de 38 países inventariam o presente e auscultam futuros a partir do Sul Global, num acúmulo plural e fértil de visões.
Composta a partir das respostas à convocatória aberta do evento, que propunha um exercício em torno da própria ideia de memória, a exposição principal remete inevitavelmente a processos e promessas que se anteviam, ainda que de forma tímida ou precária, nessas quatro décadas de Videobrasil, atestando o arco descrito pelo vídeo como matéria-prima da arte e fundamento na construção de novas linguagens; e, mais uma vez, celebra as contaminações entre linguagens que o meio trouxe para o centro da produção contemporânea, desfazendo categorias e desafiando certezas.
Ao convidar os artistas a visitar e interrogar os mecanismos da memória, esta bienal se torna especialmente reveladora da potência revolucionária que se materializa no encontro entre as possibilidades do vídeo e as forças do real. Através do vídeo e de arquivos, memórias e experiências pessoais figuram de forma significativa em reconstituições afetivas de fatos históricos. O trânsito entre pessoal e coletivo gera novas articulações de subjetividade e história, e concorre para elaborar traumas do passado que, incidindo de forma singular na vida de homens e mulheres, dizem respeito a coletividades inteiras. Nem sempre tudo isso foi tão claro.
A ideia de uma Câmara de ecos, título dos Programas Públicos desta bienal oriundo de poema de Waly Salomão, remete tanto à noção de um espaço físico quanto metafórico em que ideias e proposições reverberam e são amplificadas a partir da comunicação. Os encontros, discussões, pesquisas, exibições e performances que compõem os programas conjugam o desejo de fazer ressoar temas e questões que emergem tanto da exposição Especial 40 anos como da exposição principal, refletindo sobre o legado do evento e as diferentes gerações de artistas participantes – do Brasil, do Sul Global e do mundo.
O que fez do Videobrasil vitrine e catalisador de um movimento de renovação das linguagens artísticas foi justamente o desejo de acolher e dar visibilidade àquilo que ainda não tinha forma. Também produziria reverberações importantes a intuição do recorte que prioriza, a partir dos anos 1990, a produção vinda de países com histórias assemelhadas de subordinação política e cultural. A partir dele, e com a parceria fundamental do Sesc SP, o Videobrasil ajudou a revelar práticas artísticas que encontram formas muito diversas de confrontar hegemonias e assimetrias e, operando a partir de necessidades, realidades e referências próprias, vocalizam sua dissidência em relação aos eixos estabelecidos da arte.
O acervo de mais de três mil obras, documentos, publicações e depoimentos reunido em torno do Videobrasil é certamente um dos mais significativos do mundo acerca dessa produção. Fonte potencial de articulações curatoriais e históricas reveladoras, que se estendem em muitas direções no tempo e no espaço, ele assume um lugar cada vez mais central em nossas perspectivas como instituição. Preservar essa história para gerações futuras é olhar para o Acervo Histórico Videobrasil como um projeto de memória em edição, colocando em diálogo lugares e tempos, e buscando sua pertinência no presente. A 22ª Bienal aprofunda nossa sensação de que a salvaguarda desse acervo é uma enorme responsabilidade, sobretudo em um país marcado pela ausência crônica de políticas consistentes de preservação do patrimônio cultural. Em um ambiente político renovado que, afinal, busca fazer frente às perdas humanas e de direitos dos últimos anos, recompõe-se nossa disposição de manter viva, ativa e à disposição de todos a produção de uma região que, como percebemos com alegria, do alto de nossas quatro décadas de dedicação, apenas começa a mostrar sua força ao mundo.
Foto: ©Acervo Videobrasil / Denise Andrade
SOLANGE OLIVEIRA FARKAS, diretora artística
1955 | FEIRA DE SANTANA, BRASIL
Fundadora da Associação Cultural Videobrasil, atua como diretora artística da Bienal Sesc_Videobrasil desde sua primeira edição, em 1983. Foi diretora e curadora-chefe do Museu de Arte Moderna da Bahia (2007-2010), e curadora convidada da 10ª Bienal de Sharjah (Emirados Árabes Unidos, 2011), da 16ª Bienal de Cerveira (Portugal, 2011), da 5ª Videozone – International Video Art Biennial (Israel, 2010), da FUSO – Mostra Anual de Videoarte (Portugal, 2011-2014 e 2017) e da Dak’Art – Biennial of Contemporary African Art (Senegal, 2016). Foi curadora das mostras Reviravolta (MAES e Galeria Homero Massena, Vitória, 2022) e cocuradora da exposição Dear Amazon: Brazil X Korea The Anthropocene 2019 (Ilmin Museum of Art, Seul). Integrou o júrida 10ª Bienal Africana de Fotografia (Mali, 2015) e da 14ª Bienal de Sharjah (2019). Integra o Comitê de Premiação do Prince Claus Fund Award (2017-2018), o conselho consultivo doespaço de arte Pivô, em São Paulo, e o board do IBA (International Biennial Association). Contemplada com o Prêmio Sergio Motta em 2004, ganhou, em 2017, o Montblanc Arts Patronage Award, destinado a profissionais de destaque no apoio ao desenvolvimento das diversas expressões artísticas e culturais.