A MEMÓRIA É UMA ILHA DE EDIÇÃO
“A memória é uma ilha de edição – um qualquer / passante diz, em um estilo nonchalant, / e imediatamente apaga a tecla e também / o sentido do que queria dizer”. Com esses versos, o poeta brasileiro Waly Salomão (1943-2003) inicia o poema Carta aberta a John Ashbery, de 1995. A icônica frase vai ao encontro do tom de celebração desta edição do Videobrasil, que completa quarenta anos. Faz-se necessário, portanto, não apenas refletir sobre tempo e memória, mas revisitar a importância do vídeo nestas quatro décadas. Se em 1983 ele era associado sobretudo ao poder concentrado da televisão, hoje, seguindo a lógica do poeta, tendemos a editar nossa própria memória com a ponta dos dedos.
Leiamos com atenção sua frase: como se dá a equação entre lembrança e esquecimento? O que cortaríamos e o que inseriríamos em nossas memórias? Quais dos angustiantes acontecimentos que nos afetaram coletivamente desde a última edição do Videobrasil, em 2019, merecem análise minuciosa, como no trabalho em uma ilha de edição? Quais são as fronteiras éticas de um corte? Quem detém o poder de fazê-lo? Como uma sequência de imagens pode revisitar narrativas que dizem respeito a uma família, nação, região? Como forjar a memória do que não vimos ou sentimos no corpo? Quais são os limites da memória?
Recebemos 2.726 inscrições da região geopolítica que convencionamos chamar de Sul Global. Apresentamos nesta ocupação do Sesc 24 de Maio obras de cerca de 60 artistas e coletivos que, de formas dissonantes, refletem a respeito das articulações entre imagem, memória, manipulação, ficção e esquecimento. Eles vêm de países tão diferentes como Colômbia, Curaçau, Estônia, Iraque e Nova Zelândia. Longe, porém, de tentar ilustrar narrativas formadoras da ideia de nação e pertencimento, estes criadores de imagens preferem bagunçar a imaginação do público e as expectativas em torno de seus lugares de origem.
Historicamente, como seu nome diz, o Videobrasil se concentrou em compartir e debater o audiovisual. Aqui, dando prosseguimento à ampliação de linguagens iniciada em 2011, o espectador encontra fotografia, gravura, desenho, pintura, escultura e instalação; sim, o vídeo ainda predomina, mas as formas como é compartilhado variam. Não seria oportuno oferecer experiências fruitivas do vídeo que respondem não apenas às renovações tecnológicas recentes, mas também a reflexões sobre seus aparatos já históricos? Em um ano de revisão das quatro décadas do evento, os visitantes serão estimulados por flashes, ruídos e movimentos em salas escuras, televisores de tubo, videowalls, painéis de LED, tablets e projetores.
A 22ª Bienal Videobrasil é resultado do trabalho dedicado não apenas dos artistas que a compõem, mas de uma equipe de profissionais que vem se preparando ansiosamente para este momento nos últimos anos. Assim como qualquer outra exposição, é um conjunto de efemeridades que um dia serão elementos de narrativas articuladas em novas ilhas de edição. Na incerteza da duração dessas memórias vindouras, aproveitemos esses meses da bienal e gozemos das visões existenciais aqui trazidas no calor da hora por meio de suas exposições e programas públicos.
Todo fim é um começo que é outro fim; eis a serpentina das curvas de idas-e-vindas que constituem nosso cérebro, as fitas VHS e os discos rígidos. Quando esvairmos, assim como tantos artistas já nos ensinaram, talvez restem as reproduções e cópias de exibição destes trabalhos – talvez! Se essas imagens não resistirem materialmente ao tempo, teremos nossa boca para relatá-las.
Enquanto houver vida, haverá memória.
Foto: ©Acervo Videobrasil / Leda Abuhab
RAPHAEL FONSECA, curador convidado
1988 | RIO DE JANEIRO, BRASIL
Pesquisador nas áreas de história da arte, crítica, curadoria e educação. Tem interesse especial pelas relações entre arte, cultura visual e história em suas diversas concepções. A justaposição de diferentes temporalidades e a forma como isso pode suscitar reflexões contemporâneas para o público é de grande importância em sua prática. Humor, absurdo, cultura pop e a compreensão de que uma exposição se relaciona com as ideias de instalação, cenografia e espetáculo tem crescido dentre seus interesses de pesquisa. É o primeiro curador de arte latino-americana moderna e contemporânea no Denver Art Museum, nos Estados Unidos, e assina a curadoria geral da 14ª Bienal do Mercosul (2024). Trabalhou como curador do MAC Niterói entre 2017 e 2020. Doutor em Crítica e História da Arte pela UERJ, recebeu o Prêmio Marcantonio Vilaça de curadoria (2015). Entre suas exposições recentes estão Who tells a tale adds a tail (Denver Art Museum, 2022), Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil (Sesc 24 de Maio, 2022), The silence of tired tongues (Framer Framed, Amsterdã, Holanda, 2022), Sweat (Haus der Kunst, Munique, Alemanha, 2021-2022), Vaivém (Centro Cultural Banco do Brasil – São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, 2019-2020), Lost and found (ICA Singapore, 2019), Sonia Gomes – a vida renasce, sempre (MAC Niterói, 2018) e The sun teaches us that history is not everything (Osage Art Foundation, Hong Kong, 2018).
RENÉE AKITELEK MBOYA, curadora convidada
1986 | NAIRÓBI, QUÊNIA
É escritora, curadora e cineasta. Seu trabalho se baseia na biografia e na contação de histórias como forma de pesquisa e produção. Renée está atualmente preocupada em olhar e falar sobre imagens e as formas como elas são produzidas, mas especialmente como elas passaram a desempenhar um papel crítico como evidência da paranoia branca e como expressões estéticas da violência racial. Frente a isso, Renée busca entender melhor as maneiras pelas quais tais imagens são usadas para reforçar a narrativa institucionalizada do corpo racializado como um constante perigo à lei. Entre seus projetos mais recentes estão Sweet Like Honey (Northern Corner Gallery, Musanze, 2022) e A Glossary of Words My Mother Never Taught Me (Cell Project Space, Londres, 2021). Renée trabalha entre Dakar e Nairóbi e é editora colaborativa do Wali Chafu Collective.